Atualizado em: maio 14, 2025 às 8:46 am

Por Guilherme Costa

Para nós, simples leitores, uma das coisas mais comuns em nossa jornada é a tal da ressaca literária. Seja por ter lido algo magnífico ou por empacar num livro chato, o sentimento de impotência é imenso. A cura está na leitura, porque “alguma hora vai”. E foi assim que eu conheci o livro “Gaiola de Esperar Tempestades”, lançado pela editora Dublinense.

Romance de estreia da autora Gabriela Richinitti, o livro foi o meu grande companheiro no retorno ao rumo da leitura. A história segue os passos de Charlotte durante os anos 90 e os amargos dias atuais. Duas vidas. Uma jovem e outra adulta. Como a própria escritora comentou, não há espaço para dicotomias em suas histórias: “Pessoalmente, eu nunca curti histórias que trazem embates maniqueístas, com vilões e mocinhos bem definidos. A questão é que não acredito nessa dicotomia e, portanto, não consigo acreditar nem no lado da ‘vítima’, nem no lado do ‘algoz'”.

Lendo o livro (não vou comentar muito, porque você o deve ler), notei que a música era um ponto importante para os personagens. Então eu comecei a refletir sobre como a música se conecta com um livro. Para mim, os exemplos foram “Daisy Jones and The Six” (que eu jamais imaginei um Soft Rock inspirado na Era Lindsey Buckingham do Fleetwood Mac, como foi o tom da série inspirada no livro; imaginei algo mais Jefferson Airplane) e “O Bicho da Seda” (cuja história não tem muito a ver com a música, mas uma personagem era fã do Blue Öyster Cult – o suficiente para todo início de um capítulo ter um trecho de uma música da lendária banda norte-americana).

Pois bem, nada melhor que a própria autora do livro que me levantou reflexões a respeito da conexão entre música e literatura dissertar sobre o tema. A advogada e doutora em Escrita Criativa, Gabriela Richinitti, é a personagem do mês do 5 Perguntas do Um Outro Lado da Música!

O seu primeiro romance “Gaiola de Esperar Tempestades” não é o tipo de história que tem uma dinâmica entre vilão/mocinho, que é muito comum para o público brasileiro acostumado a novelas e filmes de Hollywood. Como você pensou na construção desses personagens e como você olha para essas histórias que focam em personagens mais dúbios e não num “bem vs mal”?

Pessoalmente, eu nunca curti histórias que trazem embates maniqueístas, com vilões e mocinhos bem definidos. A questão é que não acredito nessa dicotomia e, portanto, não consigo acreditar nem no lado da “vítima”, nem no lado do “algoz”. Suponho que todos nós, no decorrer de uma vida, ainda que de maneira involuntária, alternamos entre esses polos – somos bons e maus a depender da situação e do ponto de vista, mas não somos nem queremos ser reduzidos a uma situação ou a um ponto de vista. Por que, então, uma personagem deveria ser puramente boa ou má?

A complexidade humana é a fonte primordial da literatura. Simplificar as possibilidades que coexistem num mesmo indivíduo é como receber uma paleta ampla de cores para pintar um quadro, mas escolher utilizar apenas um par delas. Pode ser que o resultado fique bacana e até disruptivo, desde que essa seja sua intenção – contanto que você saiba o que está fazendo e não esteja pintando tudo de cinza e rosa por julgar que o mundo realmente seja cinza e rosa.

Existe, é claro, uma estrutura arquetípica consagrada pelas telenovelas, pela literatura infantojuvenil, pelos romances de banca, pelos filmes de herói, mas essas narrativas possuem características e funções muito próprias. As crianças devem aprender valores morais, portanto são apresentadas a duas forças opostas e induzidas a torcer por aquela que demonstra virtudes e promove o bem. Já as telenovelas e os romances de banca são herdeiros diretas dos melodramas que caracterizavam os folhetins do século XIX. Nessas narrativas, até mesmo os acontecimentos e atitudes ruins carregam um sentido edificante.

Quanto às telenovelas, há uma observação interessante: as tramas que aderem à memória coletiva não são aquelas que trazem inimigos detestáveis infernizando mocinhos perfeitos. São os vilões carismáticos que sobrevivem no imaginário popular. Não seria isso também uma demanda reprimida pelos sentimentos confusos que gente de verdade consegue suscitar? A ruptura do dualismo é fascinante justamente porque é imprevisível. Paradoxalmente, são as demonstrações de fraquezas e indignidades que tornam alguém confiável. E a literatura é exatamente isso: suspender a descrença para habitar, ao longo de algumas páginas, um outro universo.

Aqui eu estou mais habituado em ter contato com os desafios de um músico independente. No mundo literário, quais são os desafios para publicar, divulgar e encontrar espaços para discutir sobre um livro?

Vida de artista no Brasil nunca é fácil. O escritor ainda conta uma dificuldade extra: o público leitor é mais restrito em relação àquele que aprecia música e cinema. Às vezes, parece que há mais escritores do que gente disposta a ler. Para piorar, o livro tem se tornado cada vez mais caro.

Tudo isso coloca uma pressão gigantesca sobre o mercado editorial, que seleciona muito bem os projetos nos quais investe os estreitos recursos. Para não engavetar suas histórias, muitos autores recorrem à autopublicação – ou seja, pagam para trabalhar. E, mesmo depois de publicados, precisam ser mestres do marketing para fazer o livro circular minimamente.

Levando em consideração essa realidade, posso dizer que tive uma sorte e tanto. Talvez uma sorte induzida, vamos lá, já que passei seis anos cursando a Pós-Graduação em Escrita Criativa. Uma vez lá dentro, você conhece muita gente e compartilha seu trabalho de maneira natural. Sem dúvidas, meu primeiro livro foi publicado graças a esse ambiente favorável. Foi lá que conheci boa parte das pessoas envolvidas na produção do meu livro, incluindo meu editor.

Você é formada em Direito e fez pós em Escrita Criativa. A escrita sempre esteve na sua vida ou foi fruto de alguma ruptura? Teve algo a ver com algum encontro com uma pessoa numa rodoviária de Porto Alegre? (risos).

A escrita sempre esteve na minha vida. Desde que publiquei o Gaiola, essa pergunta vem sob diferentes roupagens, me levando a pensar na razão pela qual eu escrevo. Por que eu sou tão medíocre no violão, apesar de já ter me empenhado tanto a aprender, enquanto a escrita se tornou uma parte indissociável da minha personalidade sem que eu sequer tenha me esforçado? Quer dizer, é óbvio que passei um tempo incalculável da minha vida escrevendo, mas não houve um momento em que decidi aprender a escrever, em que conscientemente reservei um espaço para me empenhar nisso. Simplesmente aconteceu. Foi tão natural quanto aprender a falar.

Algumas pessoas, por exemplo, são muito afinadas (não é o meu caso). Em algum momento, talvez ainda na infância, essa pessoa afinada tentou acompanhar uma música e percebeu que tinha facilidade naquilo. Alguém pode ter comentado: que voz bonita, você deveria investir nisso. Se essa pessoa hipotética não fizer nada a partir daí, é improvável que se torne uma cantora. Talvez ela seja tímida demais para isso ou apenas não goste de cantar. Tudo bem. É um potencial que não será desenvolvido. Com um pouco de treino e disciplina, alguém que ama cantar, mas que não nasceu afinado pode tranquilamente superar – e muito – aquele cantor inato que nunca investiu no seu “talento”.

Por isso, para mim, o tão falado talento natural é muito menos importante do que o interesse natural. Eu não nasci sabendo escrever, assim como você não nasceu sabendo tocar guitarra. Mas algo dentro de nós mobilizou o fascínio por essas atividades. No meu caso, acho que aconteceu na primeira historinha que me contaram. Eu mal sabia falar, mas já tentava recontar para meus coleguinhas o que tinha escutado. Hoje, posso passar horas e horas debruçada sobre um texto apenas porque ele ainda não está como eu quero, mas deus me livre de passar mais do que quinze minutos tentando reproduzir no violão o riff de uma música (por mais que eu ame essa música).

Curiosamente, eu tive esse insight por causa da minha cachorra. Alguém a descartou dentro de uma caixa numa noite muito fria de inverno. Ela era muito assustada. Assisti a alguns vídeos sobre comportamento canino no Youtube e apresentei a ela uma série de atividades típicas de um cachorro feliz: roer osso, destruir pelúcias, correr, brincar com outros cachorros, fazer cabo de guerra, cavar buraco. Ela gosta de tudo isso, a depender da disposição do dia. Mas, quando comprei para ela uma bolinha, lancei através do pátio e gritei “busca!”, algo diferente acendeu dentro dela. A faísca da obsessão cintilou em seus olhos. Ela passou a perseguir a bola com toda sua energia vital. Às vezes, está visivelmente tão exausta que precisamos proibir que continue correndo atrás da bola, porque ela não é capaz de medir os próprios limites nesse estado.

Para mim, é esse o momento de “ruptura” que nos torna realmente bons em alguma coisa. A paixão, muito mais do que o talento.

Ah, e sobre encontros em rodoviárias… não! Essa história tem alguns pontos de contato com fatos reais, mas nada do que as pessoas geralmente pensam. E nada que tenha acontecido comigo. É mais uma mistura de várias histórias que as pessoas me contaram, filtrada pelas minhas próprias interpretações acerca da natureza humana.

“Gaiola de Esperar Tempestades” conta com a presença marcante da música no enredo. Como e por que você escolheu as bandas para que elas se tornassem parte da história?

Vou soar um pouco decepcionante agora, mas preciso ser sincera: as bandas estão lá por fatores circunstanciais. Quando comecei a escrever o livro, aquele filme sobre a vida do Freddie Mercury, “Bohemian Rhapsody”, tinha acabado de ser lançado (sim, isso foi em 2018, faz muito tempo que comecei a escrever o livro). Freddie é um símbolo da libertação, é a voz que entoa “I Want To Break Free”. Essa música expressa o conflito interno de um eu-lírico que confessa estar pela primeira vez apaixonado, mas que reconhece a necessidade de se habituar à ausência da pessoa que ama, pois a vida continua e ele precisa se libertar. Ele não quer viver sozinho, e por isso precisa seguir sozinho. Essa música, assim como outras do Queen, capturam uma parte essencial da história de Charlotte. Além do mais, Freddie morreu no final de 1991 – no mesmo mês em que a protagonista sofre uma grande “perda”. Assim, a banda se articulou perfeitamente com o enredo. Queen precisava estar lá.

Em resumo: embora eu goste de Queen, está longe de ser minha banda favorita. É o pano de fundo dessa história, mas de modo algum o livro foi escrito como um tributo ou coisa parecida.

Uma vez eu fiz um roteiro de uma radionovela para um trabalho da faculdade e queria colocar o Stewart Copeland como referência. A ideia foi vetada, porque somente eu o conhecia. Nessas escolhas para colocar um artista na história, você pensa em o quanto ele é conhecido e como isso pode ajudar na assimilação do leitor?

Eu não conhecia o Stewart Copeland, mas certamente não teria vetado a referência. Achei muito injusto! Quantas vezes artistas se tornam conhecidos por conta de documentários ou mesmo retratos ficcionais? Uma pesquisa básica me mostrou que o Copeland é baterista de bandas muito conhecidas, mas o grande público talvez não saiba quão bom baterista ele é ou o que fez de interessante antes ou durante a carreira. Além disso, Stewart Copeland é um ótimo nome, capaz de, por si só, despertar curiosidade. O fato de ser mais ou menos conhecido só vai mudar a abordagem, a maneira como você introduzirá essa figura ao leitor ou espectador. Não creio que exista uma regra, mas as expectativas do público em relação a Elvis Presley ou Michael Jackson determinam um horizonte que pode ser reafirmado ou rompido, tudo depende do intuito e da habilidade do artista.

Eu não me preocupei em dissecar a personalidade de Freddie Mercury ou Ian Curtis porque a função deles no enredo era acessória. Freddie Mercury, como já disse, é um símbolo de libertação. Ian Curtis tem essa aura de gênio perturbado (se bem me recordo, isso está dito no livro) e, justamente por ser menos conhecido, serve para estender o conhecimento da outra personagem para além do mainstream. A ideia nunca foi dizer algo sobre Freddie Mercury ou Ian Curtis, mas sobre Charlotte e Leona – era a personalidade delas que eu estava tentando apresentar. Se o leitor não conhecesse esses dois artistas, tudo bem, poderia aproveitar a referência ou assumir como gostos das personagens, assimilando a ideia geral a partir do que a própria história transparece.

Estive muito mais preocupada em escrever de maneira nítida e coesa do que antecipar o alcance das referências de um leitor hipotético. A história tem que se sustentar independentemente disso. Espero ter conseguido!

6. Músicas em trilhas sonoras de filmes/séries tem um papel fundamental na narrativa da história. Pensa que a música também tem esse poder na narrativa de um livro?

Certamente! Para mim, literatura, cinema e música são indissociáveis. São “artes-irmãs”.

A música pode mudar o tom de uma cena, pode transformar um momento fraco em um clímax, pode nos fazer sentir medo, ansiedade, tristeza, libertação. Por outro lado, as palavras, a poesia e até mesmo a narrativa são instrumentos da música. Não significa que todas as canções precisem disso – assim como nem todas as canções precisam de um piano, um sax, uma guitarra –, mas a letra pode, sim, ser o coração de uma música. Há músicas que contam uma história (eu particularmente adoro), há músicas que se transformam em filmes. Amor e Sexo, um dos grandes clássicos da Rita Lee, veio de uma crônica do Arnaldo Jabor. O Morro dos Ventos Uivantes, da Emily Brontë, inspirou um dos maiores sucessos da Kate Bush, “Wuthering Heights”. Os exemplos são inúmeros. Ao contrário das adaptações cinematográficas de livros – que, em geral, são muito criticadas –, a ponte que liga a música à literatura e ao cinema (em qualquer dos sentidos) costuma levar a obras que engrandecem ou superam a referência.

7. O Um Outro Lado da Música tem um quadro que se chama “Um Outro Lado Indica”. E eu quero saber de você, qual artista/banda e um livro você indica para mim e para quem está lendo a entrevista!

Apesar de Queen estar bem presente no livro, eu não sou super fã de Queen. E – alerta de spoiler –, a banda que a protagonista detona ao final é uma das minhas bandas de rock favoritas: Arctic Monkeys. Confesso que os últimos dois discos não me pegaram muito, mas os anteriores sim, bem como o trabalho paralelo do Alex Turner no The Last Shadow Puppets e em carreira solo.

Indico, portanto, o álbum “Submarine”, obra solo do Alex Turner para o filme de mesmo nome. As músicas são lindas, melódicas e carregadas de significado.

Para não ficar tão clichê, aí vai algo mais inesperado: sou uma grande fã da Malvina Reynolds, uma senhorinha que, com seu violão acústico, compôs verdadeiros hinos revolucionários muito divertidos de escutar.

Na literatura, eu gosto de escritores que não se acovardam diante de temas espinhosos, criando livros desconfortáveis. Um cara que sabe revirar a índole humana ao mesmo tempo em que conta uma boa história é o Jonathan Franzen. Encruzilhadas, o último dele, é um baita livro, assim como Pureza e As Correções.

Na literatura brasileira, nós temos duas contistas sem precedentes: Lygia Fagundes Telles (Antes do Baile Verde) e Clarice Lispector (qualquer coisa escrita por ela, de receita de bolo a bula de remédio, tende a ser genial).

Para finalizar, quero agradecer demais o convite, o espaço e a oportunidade de responder perguntas tão fora do convencional. Eu me diverti demais!