Atualizado em: setembro 2, 2025 às 8:46 pm

Por Arthur Coelho

A cena de post-hardcore/hardcore melódico dos anos 2000 ficou marcada por bandas que uniam elementos musicais intensos e rápidos com certo flerte do metal, assim como quebras acessíveis de refrãos apoiadas em letras pessoais que miravam mais dentro do que fora.

Porém, isso nunca significou que o abalo político e contestador que deu origem ao gênero, desde os primórdios do punk, tivesse um abandono completo. Ainda que abordado em menor consistência, suas raízes sempre estiveram presentes em tal cena e podemos falar que o Thursday é um dos grandes responsáveis por manter essa tradição entre diferentes eras.

O grupo foi fundado em 1998 e, entre ensaios de adolescentes em porões no subúrbio de New Brunswick (Nova Jersey), deu início a uma história que já marca quase três décadas no mundo da música e diversos lançamentos de estúdio. Um de seus trabalhos mais icônicos até hoje é “Full Collapse”, lançado em 10 de abril de 2001 pela Victory Records, como a segunda compilação de sua discografia. Além de servir como grande catapulta para o Thursday na cena hardcore, o álbum se tornou um grande marco para uma série de artistas e bandas que viriam a surgir em outros estilos, como Touché Amoré, Deafheaven e La Dispute.

Gravado por Geoff Rickly (vocais), Tom Keeley (guitarra solo), Steve Pedulla (guitarra rítmica), Tim Payne (baixo) e Tucker Rule (bateria), o trabalho foi capaz de equilibrar o dramatismo emo com letras poéticas/mórbidas inspiradas pelo post-punk darwave e colocar temas sociais – misoginia estrutural, preconceito LGBT, colonialismo e violência urbana – na mente de seus ouvintes.

Mesmo 20 anos depois do lançamento oficial, sua abordagem permanece mais relevante que nunca e continua sendo uma verdadeira lente crítica da realidade com reflexões pertinentes. Sua abertura “A0001”, por exemplo, demonstrou um ponto fora da curva ao já se questionar sobre a possibilidade das máquinas tomarem a autonomia humana, antes mesmo de falarmos de inteligência artificial.

“We’ll all look the same someday/And even now the robot starts to think/I wonder what it dreams (Todos nós seremos iguais algum dia/E agora o robô começa a pensar/Eu me pergunto o que ele sonha)”

Capa oficial do “Full Collapse”

O prólogo logo dá espaço para “Understanding In A Car Crash”, que logo de cara mostra todo o potencial musical do quinteto em uma faixa que viria a ser considerada uma das melhores de toda a onda emo.

“Splintered piece of glass falls in the seat, gets caught/Broken windows, open locks/Reminders of the youth we lost/In trying so hard to look away from you/We followed white lines to the sunset/I crash my car every day the same way (Peças quebradas de vidro caem no banco e ficam presas/Janelas quebradas, fechaduras aberturas/Lembretes da juventude que nós perdemos/Na tentativa de olhar para longe de você/Nós seguimos linhas brancas para o pôr do sol/Eu bato meu carro todo dia da mesma maneira)”

É curioso pensar que diferente de hits convencionais, o som não conta com um refrão definido, e mesmo assim consegue atrair e prender o ouvinte. Talvez isso aconteça graças às linhas de guitarra que aqui são responsáveis pela criação de uma atmosfera de constante tensão.

“Staring at the setting sun/No reason to come back again/The twilight world in blue and white/The needle and the damage done/I don’t want to feel this way forever/A dead letter marked “Return to Sender (Encarando o sol se pondo/Sem razão para retornar novamente/O mundo crepuscular em azul e branco/A agulha e o estrago foi feito/Eu não quero me sentir dessa forma para sempre: uma carta marcada com retorno ao remetente)”

Inspirada em um trágico acidente que resultou na morte da melhor amiga de Geoff Rickly, a letra é uma das mais poderosas feitas pela banda e se apega num lirismo pós-moderno, algo que o vocalista já confirmou em uma entrevista ao Alt Press:

“Na época, eu estava descobrindo muita literatura pós-moderna e a desconexão entre a articulação do desespero e a palavra para ele. A grande distância entre as pessoas que te consolam e falam com você sobre o dia a dia da perda, mas ainda não conseguem sentir nada. A desconexão das emoções das palavras era uma coisa muito pós-moderna. Encontrei essa maneira de escrever sobre isso que parecia verdadeira para mim”.

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Outro trauma é tema em “Concealer”, curta música que abre com o frenesi cru do grupo ao lado de vocais limpos e gritos sem técnica que se sobrepõem a todo o momento. Sua letra escrita por Geoff e Tom Keeley trata de abuso e violência doméstica.

“With fists raised high in tightened knots/the room explodes and now this blood is on your hands/and there’s no time for a second chance/to paint my face with blood and tears and cover up/An open book that no one reads/A misspelled word that no one knows (Com os punhos erguidos em nós apertados/A sala explode e agora esse sangue está em suas mãos/E não há vez para uma segunda chance/Para pintar meu rosto com sangue e lágrimas e cobrir tudo/Um livro em aberto que ninguém lê/Uma palavra mal escrita que ninguém conhece)”

Faixa obrigatória em shows, “Autobiography Of A Nation” coloca o Thursday para denunciar as mazelas do genocídio indígena em seu país. Seus versos iniciais foram retirados do poema Sun, originalmente escrito por Michael Palmer (1942).

“Write these words back down inside/We have burned their villages and all the people in them died/We adopt their customs and everything they say we steal/All the dreams they had we kill/Still we all sleep sound tonight/Is this what you wanted to hear?/We erased all their images and dance/And replaced them with borders and flags (Anote essas palavras/Nós queimamos suas vilas e todas as pessoas lá morreram/Nós adotamos seus costumes e nós roubamos tudo o que eles dizem/Todos os sonhos que eles tinham nós matamos/Nós ainda dormimos profundamente esta noite/Isso é o que você queria ouvir? /Nós apagamos todas suas imagens e danças/ E as substituímos por bandeiras e fronteiras)”

O protesto é tomado pela alternância de um instrumental sombrio com gritos caóticos e não deixa de destacar o peso dos graves do baixo com o bumbo em uma atmosfera que flerta com o metal.

“Yeah, we all dance to the same beat when we we’re marching/Yeah, the TV tells us everything we need to know/And this scene is painting in all the fashions of the moment/And history is all the same/Everything you say you stole/Every dream you dream you bought (Nós todos dançamos na mesma batida quando estamos marchando/A televisão nos diz tudo o que precisamos saber/E essa cena está pintando em todo tipo de momento/A história é sempre a mesma/Tudo que você diz você roubou/Cada sonho que você sonhar que você sonha você comprou)”

O guitarrista e backing vocal Tom Keeley é responsável por “A Hole In The World”, escrita em sua antiga banda Circle Takes The Square, e é o mais próximo que o grupo chega de uma canção sensível de amor.

“In this blackout inertia will hold our thoughts/And the exit sign offers no light to see by/Can we cast our shadows alone in the dark?/I can’t see without you/When the world is crashing down (Esse apagão de inércia vai segurar nossos pensamentos/E o sinal de saída não oferece nenhuma luz para ver/Nós podemos lançar nossas sombras sozinhas no escuro?/Eu não posso ver sem você/Quando o mundo está desabando)”

“Cross Out The Eyes” abre com a maestria tribal de Tucker Rule na bateria e durante seus três minutos de duração mostra outros arranjos impressionantes na percussão. Sua composição foi uma das primeiras de Geoff no violão e conta com a participação especial de Tom Schlatter em gritos chorosos.

“Let’s call this the quiet city/Where screams are felt as a wave of stoplights/Drive through the streets as gunshots punctuate the night/The sides we take divide us from our faith/And the morning dove gets caught in the telephone wire/Asleep you set the fire in your own house/And the night was a knife that cut/And I’m paralyzed (Vamos chamar isso de a cidade tranquila/Onde gritos são sentidos como ondas dos semáforos/Dirija através das ruas enquanto tiros pontuam a noite/Os lados que nós escolhamos nos dividem de nossa fé/E a pomba da manhã é pega no fio do telefone/Adormecida você coloca fogo em sua própria casa/E a noite foi uma faca que corta/E eu estou paralisado)”

Assim como “Understanding”, ela também é responsável por criar um clímax crescente e vai se tornando cada vez mais agressiva com o passar dos acordes, algo que favorece a apresentação da canção quando tocada ao vivo.

Novamente para o Alt Press, o grupo chegou a revelar que a canção aponta para uma postura coletiva que critica o egoísmo lírico muitas vezes baseado apenas em sentimentos pessoais:

“Essa música era sobre obliterar toda a postura autoral de eu-eu-eu-isso-é-sobre-mim. Queríamos fazer um álbum que fosse para uma comunidade, que envolvesse uma comunidade e não fosse sobre as preocupações de uma pessoa, mas sobre uma preocupação cultural”.

“Paris In Flames” talvez seja o auge técnico e criativo do Thursday no disco. A faixa justifica seu nome com a inspiração de um documentário dos anos 90 que aborda a resistência da comunidade queer em Nova Iorque e se utiliza desse tema como ponto chave para transformar a canção em um manifesto político.

“Now its time to wrap our fears in the night/And on the first day we’ll dress this city in flames/After all the things you say/You hate me for being this way (Agora é hora de embrulhar nossos medos na noite/E no primeiro dia eu vestiremos essa cidade em chamas/Depois de todas as coisas que você diz/Você me odeia por ser desta maneira)”

Seu início possui um toque cinematográfico/teatral e novamente envolve riffs mais pesados ao lado de momentos crescentes que finalizam a música de forma épica ao passar sua mensagem de autonomia revolucionária:

“Discard this message/Throw this bottle back in the ocean/Rip this page from the history books/Smash all the street signs/Erase all the maps/Forget my name/Forget my face/Because it’s going to rain/And it never ends (Descarte essa mensagem/Jogue essa garrafa de volta no oceano/Rasgue essa página dos livros de história/Destrua todas as placas da rua/Apague todos os mapas/Esqueça meu nome/Esqueça meu rosto/Porque vai chover/E isso nunca acaba)”

O grupo estadunidense teve inspirações mais fortes do darkwave em seu disco de debute – que inclusive conta com uma faixa chamada “Ian Curtis” – mas parte dessa atmosfera sombria também ganha espaço no oitavo nome de “Full Collapse”.

“I Am The Killer” inicia com um sample de terror e logo é tomada por todo um desconforto atmosférico cheio de viradas na bateria.

“Tuesday wakes up silent and there aren’t enough pills to sleep/Like miswired short wave radio/It’s over but nothing can change to make this right/When you live in a nightmare, its written all over your face (A terça-feira acorda silenciosa e não há pílulas o viciante para dormir/Como um rádio de ondas curtas e fiação errada/Está acabado, mas nada pode mudar para consertar isso/Quando você vive em um pesadelo, isso está escrito por toda a sua cara)”

Fazendo jus ao nome, a faixa une o hardcore com uma espécie de thriller teatral e incorpora um estado constante de delírio e medo persecutório em sua letra.

“Distorient the senses, loss of identity/No one to trust, no one to trust/Life runs through this trade/I am no killer, but I still hide my face, in the coming days (Senso desorientado, perda de identidade/Ninguém para confiar, ninguém para confiar/A vida corre por essa troca/Eu não sou um assassinado, mas eu ainda escondo minha cara nos próximos dias)”

Na reta final do compilado, “Standing On The Edge Of Summer” surge com um lado nostálgico e que alivia a morbidez realista do quinteto. Durante a turnê de 2002, o vocalista e compositor Geoff Rickly disse que a ideia da música surgiu após um último contato com sua avó antes dela morrer. A canção se utiliza de melodias mais leves para refletir sobre aquela sensação clichê de enfim perceber que todos envelhecem (inclusive você).

“So we stay on the open/We drive for hours and still no end in sight at all/Driving in you car/Miss the stop sign fall in love/Just to get knocked down/Summers edge and drown me/Betting on our own lives/Making up for all time we lost (Então nós ficamos ao relento/Nós dirigimos por horas sem um fim à vista/Dirigindo no seu carro/Perco o sinal de parada e me apaixono/Apenas para ser derrubado/O verão me cerca e me afoga/Apostando em nossas próprias vidas/Compensando todo o tempo que perdemos)”

Em seguida, o lado mais caótico e frenético do Thursday retorna em “Wind Up”, canção muitas vezes esquecida pelos fãs e banda. Seu som chega a flertar com a sonoridade de bandas screamo e mais uma vez destaca as virtudes instrumentais de Tom Keeley, Steve Pedulla, Tim Payne e Tucker Rule em uma tomada rápida e cheia de versatilidade.

O trabalho do produtor Sal Villanueva – que continuou a colaborar com o Thursday em discos futuros – também brilha aqui e garante que a faixa soe como um verdadeiro barril de pólvora.

“Winding up to what you cannot unwind this side of you/And if its taken away you wont know what to do/You are stretching to meet expectations/That you will never reach (Se enrolando no que você não pode desenrolar deste seu lado/E se isso for tirado de você, você não saberá o que fazer/Seu esforço para atender às expectativas que nunca alcançará)”

“And now its far too late, and now its far too late/Far too late, to ever leave this cold/I’m giving up, marching in time with their drums/I’m letting go of everything I once loved (E agora é tarde demais, e agora é tarde demais/Tarde demais para deixar esse frio/Eu estou desistindo, marchando no compasso dos tambores deles/Eu to deixando que tudo que eu amei um dia)”

Se o The Smiths se fundisse com uma banda emo, pode ter certeza que “How Long Is The Night?” seria a representação própria de uma composição deles.

A canção de número onze volta a flertar com a morbidez romântica de “I Am The Killer” e conta a história de um ex-colega de classe do vocalista do grupo que deitava nos trilhos do trem à espera de seu esmagamento e consequente morte.

“If we run far away, think we will ever die/We’ll throw all these books in the fire/Can you stop the train, cause it some delay/The change machine lied, and its too late/To scream, how long is the night/It’s never over, it’s never over (Se nós fugirmos para longe, pense que nós já vamos morrer/Jogaremos todos esses livros no fogo/Você pode parar o trem, causar certo atraso/A cobradora mentiu, e é tarde demais/Para gritar quão longa a noite é/Ela nunca acaba, nunca acaba)”

Sua letra é provavelmente a mais melancólica de toda a discografia do Thursday e responsável por fechar os quase seis minutos de duração com uma despedida suicida:

“I’m falling down, I’m falling down/and you’re not here to catch my fall/I shut my eyes when you around/I hold my breath to kill the sound/I’m falling down, I’m falling down/And your not here to catch my fall (Eu estou caindo, eu estou caindo/E você não está aqui para me segurar/Eu fecho meus olhos quando você está por perto/Eu seguro minha respiração para silenciar o som/Eu estou caindo, eu estou caindo/E você não está aqui para me segurar)”

O epílogo “I1100” encerra oficialmente os trabalhos de “Full Collapse” com a mesma preocupação do início: a dominação tecnológica, que agora é representada musicalmente pelo experimentalismo minimalista.

“We’ll all look the same someday/And even now the robot starts to think/I wonder what it dreams/The tide is high on Fourteenth Street/The rain comes down to clear the heat/The way in is the same way out/The way up is the same way down/Now there is no safe way out (Todos nós seremos iguais algum dia/E agora o robô começa a pensar/Eu me pergunto o que ele sonha/A maré está alta na Rua Quatorze/A chuva desce para dissipar o calor/A entrada é a mesma saída/A subida é a mesma descida/Agora não há saída segura)”

Os mais de 40 minutos do segundo lançamento do Thursday chegam ao fim com um repertório repleto de política, traumas, sentimentalismo e poesia. Tudo isso com uma abordagem hardcore inocente advinda de jovens com certa consciência para compartilhar. Ou como melhor dito nas palavras de quem mais cantou sobre tais versos:

“Apenas um bando de crianças derramando todo o seu coração e sonhos em um grande disco: ‘Full Collapse’ foi tipo, era isso, era tudo o que queríamos fazer. E você pode ouvir, você pode ouvir nos meus vocais. Mesmo que eu não pudesse cantar tão bem, eu amo o jeito que soa porque eu pareço um garoto ingênuo totalmente inexperiente que tem muitas esperanças, paixão e sinceridade e ainda não tinha sido arruinado. Eu não sentia sarcasticamente que o mundo era um lugar de merda ainda. Então é como se eu amasse esse disco, eu ouço uma pessoa realmente esperançosa que quer dizer cada palavra que ele diz”.