Atualizado em: agosto 28, 2025 às 8:11 am
Por Victor José
Muita gente acredita que, para criar uma obra melancólica e ao mesmo tempo convincente, o artista precisa estar num estado de espírito sombrio ou flertando com essa energia. Não acho que seja uma verdade absoluta, mas com certeza isso pode ajudar bastante.
Considerando toda a produção fonográfica, é uma pena que existam tão poucos álbuns extremamente vulneráveis quanto o quarto disco da Cat Power, “Moon Pix” (1998). Ele é um desses raros casos de equilíbrio entre qualidade artística e intensidade emocional, como vemos em obras impressionantes, como o irretocável “Plastic Ono Band”, de John Lennon, ou o corajoso “Loki?”, de Arnaldo Baptista.
“Moon Pix” redefiniu os limites emocionais do indie dos anos 1990 e ainda ecoa fortemente mais de duas décadas depois.
Um pesadelo mudou tudo
Chan Marshall, a pessoa por trás do pseudônimo Cat Power, faz música como ninguém. Dona de uma voz lindamente rouca e irregular, tem um estilo único — e se engana quem acha que seu jeito de tocar guitarra é simplório.
Desde o começo, Chan já vinha fazendo um bom trabalho, mas, em meados dos anos 1990, passou por um período difícil. A confusão na cabeça era tanta que quase abandonou a música, mesmo já tendo três discos lançados e algum prestígio na cena alternativa dos Estados Unidos.
Morando em um sítio com o namorado, na Carolina do Sul, Chan vivia na maior bad: deprimida, bebendo muito e cheia de dúvidas sobre a vida que vinha levando. Mas foi uma noite difícil de outono de 1997 que talvez tenha salvado o futuro de Chan. Segundo ela, em um desses momentos de profunda confusão, sozinha em casa, teve um pesadelo alucinatório que nunca mais esqueceu.
“Fui acordada por alguém que estava no campo, atrás da minha casa. A terra começou a tremer enquanto espíritos escuros se espatifavam contra todas as janelas. Eu acordei com meu gatinho ao lado. Comecei a rezar para que Deus me ajudasse. Então eu corri e peguei minha guitarra, tentando me distrair… Acendi as luzes, cantei para Deus e gravei uns sessenta minutos com meu gravador. Estava tocando umas progressões longas”, contou.
Dessa experiência intensa nasceu a espinha dorsal de “Moon Pix”: “No Sense”, “Say”, “Metal Heart”, “You May Know Him” e “Cross Bones Style”
Chan decidiu voltar aos estúdios e gravou o disco na Austrália. Para isso, chamou Mick Turner (guitarra) e Jim White (bateria), da banda Dirty Three, e o encontro não poderia ser mais acertado.
A sonoridade do álbum carrega um clima solto e quase hipnótico, com guitarras que se enroscam, baterias minimalistas e camadas de vozes sobrepostas, criando uma atmosfera densa e ao mesmo tempo íntima, o que fica sendo um dos grandes charmes do trabalho.
Camadas emocionais em espiral
É interessante o jeito de Chan compor. Ela se prende a uma progressão de acordes quase em um loop e destila seus sentimentos em letras cheias de emoção. Nesse disco todo cheio de arestas propositais, essa fórmula funcionou como um encaixe perfeito.
O álbum brilha como um todo, mas é claro que sempre há uma ou outra coisa que se torna mais memorável. Se fosse para separar somente uma das onze canções para definir a vibe de “Moon Pix”, eu destacaria “No Sense”, que é profundamente comovente e nos remete de fato àquela sensação bem densa de dissolução que Marshall canta na letra.
Também é difícil não se sentir tocado por “Moonshiner”, uma antiga canção tradicional do folk dos Estados Unidos, onde ela expõe seu ímpeto pelo álcool de um jeito cru e doloroso. Já “Say”, com suas guitarras tranquilas e o som de chuva ao fundo, embala uma melodia doce e introspectiva, funcionando como um retrato sonoro perfeito da vulnerabilidade que domina o disco.
Talvez o momento mais acessível de “Moon Pix” seja o clipe de “Cross Bones Style”, que também é a faixa mais “radiofônica” do álbum. E, para fechar, a sutilmente esperançosa “Colors and The Kids”, com seu belo piano, quebra um pouco a toada quase tétrica do restante do disco e acaba conquistando um status quase acidental de “cereja do bolo”.
Um marco do sadcore
“Moon Pix” marca também um ponto de guinada na carreira da Cat Power. Mesmo ainda oferecendo a bem-vinda confusão dos trabalhos anteriores, o disco aponta para uma compositora mais madura, que mesmo com sua fórmula sem muitos floreios já abria caminho para grandes feitos aclamados por um público maior, como “You Are Free” (2003) e “The Greatest” (2006). Mas quem acompanha a carreira dessa grande mulher sabe bem que “Moon Pix” é seu ponto mais alto por vários motivos, daqueles que dificilmente se repetem na trajetória de um artista.
Além disso, o álbum costuma ser lembrado como um marco importante do sadcore, um subgênero do indie rock dos anos 1990 caracterizado por atmosferas melancólicas, arranjos minimalistas e composições profundamente íntimas. Ao lado de nomes como Red House Painters, Low e Elliott Smith, Chan Marshall ajudou a consolidar essa estética, transformando suas fragilidades pessoais em um registro sonoro único e atemporal.
Hoje, aquele triste cenário de pesadelo pessoal é lembrado por muitos como um dos maiores momentos do rock alternativo dos anos 1990. “Moon Pix” é um exemplo de que, às vezes, a música vai além da expressão: ela também pode ser sobrevivência.