Atualizado em: novembro 12, 2025 às 8:46 am
Por: Arthur Coelho
A música é a máxima expressão sentimental que existe. Através dela, podemos instigar, desabafar, esbravejar e causar/sentir as mais variadas emoções. Afinal, toda música (ou a maioria delas) é repleta de emoções, independentemente de seu estilo.
Da mesma forma, há músicas ou trabalhos musicais inteiros que são construídos sobre as dores de seus letristas/compositores a partir de experiências pessoais que, ao serem transformadas e expostas a um público, tornam possível o ato de comoção e reconhecimento à letra daquela pessoa que você nunca viu na vida.
O que era apenas um sentimento individualizado se transforma, então, em uma espécie de laço. Ao menos por parte do ouvinte, que se depara com palavras advindas de uma pessoa, que mesmo sendo estranha, consegue te acertar de alguma forma, instigando suas memórias e dores mais profundas. Incluindo aquelas que você não comenta com ninguém.
Nesse sentido, o luto é um dos sentimentos mais difíceis de acolher e compreender. Pois, mesmo que todos saibam que a vida em seu sentido mais profundo é contraditória — como um cronômetro com hora marcada para acabar — ainda é um tema envolto em tabu, que constantemente fugimos e evitamos falar sobre.
Mas mesmo com tais dificuldades, o grupo de post-hardcore/hardcore melódico Touché Amoré não deixou de expor suas cicatrizes e feridas com Stage Four (2016), um discos escrito através do luto do vocalista Jeremy Bolm após a morte de sua mãe, que faleceu em decorrência de um câncer, e que fala sobre a complexidade da perda.
É também dessa tragédia vem o título da obra: Stage Four, o quarto estágio: em referência ao estado mais avançado da doença, quando ela se espalha além do local original e causa a morte geral do corpo.
O disco é, então, envolvido por esse tema, traduzindo as angústias sentimentais de Jeremy a partir de um compilado de suas mais profundas lembranças com a mãe — o que inclui a saudade, a ausência de uma presença e o sentimento de impotência. Impotência esta perante o luto.
Impotência, esta, perante o mundo e à vida em si. Pois dizem que somos os agentes transformadores de nossa realidade — e isso pode até ser verdade em certos pontos — mas, quando nos deparamos com as situações mais críticas, onde as pessoas que amamos estão morrendo, nós não podemos fazer nada para salvá-las.
A própria música de abertura “Flowers and You” contém os seguintes versos:
I apologize for the grief
When you’d talk about belief
I didn’t know Just what to say
While watching you
Wither away*
*(Peço desculpas pelo luto/Quando você falava sobre suas crenças, eu não sabia exatamente o que dizer/Enquanto via você murchar).
Não podemos, de fato, arrancar aquela doença que se espalha a cada dia; não podemos curar aquele tumor maligno e muito menos voltar no tempo para evitar que tudo aquilo aconteça. É uma condição de impotência que gera revolta. Contra Deus, o mundo e sabe-se lá mais que.
E é nessa resolva que entra a arte, uma expressão dos sentimentos do corpo/mente de quem as escreve, canta ou toca. Algo que é capaz, acima de tudo, de imortalizar. A arte é atemporal: resiste a gerações e é a única unidade em vida que sobrevive à morte.
Eis, então, a dualidade de Stage Four: um retrato sincero e comovente de uma história de morte — descrita na faixa “Eight Seconds” como “A sad story that is universal” (“uma história triste que é universal”) — e que, paradoxalmente, ganha nova vida ao transformar a lembrança de alguém em arte.
Se você já perdeu alguém, você sabe que o luto não afeta apenas o presente — aquele exato momento instante onde a falta nos atinge — mas, contamina também o passado. Ou melhor: nos deixa preso e ele. Tudo aquilo que vivemos anteriormente retorna não mais como algo banal ou desejável, e sim com uma espécie de melancolia traduzida em saudade. Um desejo que está conectado ao impossível: a vontade de retornar fisicamente ao que já aconteceu e reviver aquilo infinitas vezes.
Como não conseguimos fazer isso de corpo, fazemos com a mente. Viajando através de um passado imaginado que machuca ao mesmo tempo em que nos conforta. E é novamente citando a icônica abertura “Flowers and You” que temos essa representação de querer estar preso na repetição
I’m homesick
And living in the past
No matter what the context
I won’t have that time again
(And I live with that)*
*(Estou com saudades de casa/E vivendo no passado/Não importa em que contexto/Eu não terei aquele tempo novamente/E vou viver com isso)
Tão marcante quanto esses versos é a sequência: “New Halloween” — uma das melhores criações do quarteto Jeremy Bolm (vocal), Clayton Stevens (guitarra), Nick Steinhardt (guitarra), Tyler Kirby (baixo) e Elliot Babin (bateria) — que abre em pura frenesi com uma condução magnífica nos tambores e guitarras que transmitem algo especial.
É uma música tocante, que mexe com quem escuta e que é capaz de envolver em uma conexão espiritual (Now I just feel you everywhere, You keep finding new ways to make yourself reappear/ Agora eu sinto você em todo lugar, você continua encontrando novas formas de reaparecer) que demonstra como a perda também mexe com a subjetividade, transformando momentos, falas e até mesmo músicas em expressões de gatilho que te lembram desse amargo sentimento que é a perda. O que era comum se torna custoso. Porque passa a carregar um significado mais profundo em si.
I skip over songs
Because they’re too hard to hear
Like track 2 on Benji or What Sarah Said*
*(Eu pulo músicas/Porque são muito difíceis de ouvir/Como: a faixa 2 em Benji ou “What Sarah Said”).
A música número dois do disco Benji, da banda Sun Kil Moon) se chama “I Can’t Live Without My Mother’s Love” (Eu não consigo viver sem o amor da minha mãe), enquanto “What Sarah Said” é uma canção do grupo Death Cab For Cutie, que fala diretamente sobre o luto
E assim como Jeremy canta que tem dificuldade em ouvir a segunda faixa do disco Benji ou a canção “What Sarah Said”, também é muito difícil manter o equilíbrio sentimental ao se deparar com a melodia melancólica e os versos gritados por ele em “Rapture”, a terceira faixa.
Perceber isso é algo curioso, pois essa é uma canção tomada pela escuridão que, mesmo em um ápice depressivo, também mostra uma vontade de lutar e reagir através dos gritos do vocalista do Touché Amoré. Proferir seus principais versos é tanto doloroso quanto libertador:
Like a wave! Like the rapture!
Something you love is gone!*
*(Como uma onda!/Como um arrebatamento!/Algo que você ama se foi!)
Uma reação muito comum à dor e à perda é nos levar a questionar a fé e seus valores religiosos – especialmente àqueles ligados ao cristianismo, quando falamos das Américas – que desde cedo nos dizem que tudo o que ocorre é graças a um ser divino, onipresente, onipotente e perfeito. Mas afinal, onde está esse Deus para salvar as “boas” pessoas?
Apesar de carregar um instrumental delicado, é “Displacement” quem confronta esses dogmas com a mais genuína revolta teológica (“You died at 69 with a body full of cancer/ I asked your god how could you/ But never heard an answer”*) e expõem as divergências de crenças entre Jeremy e sua mãe. Para no final, apresentar uma conclusão: a compreensão de que ninguém se vai de fato. Isto é, de forma completa.
*(Você morreu aos 69 anos com um corpo cheio de câncer/Eu perguntei ao seu Deus como ele pode/Mas nunca ouvi uma resposta)*
Pois, assim como a arte, as lembranças também imortalizam as pessoas. Mesmo aquelas que não estão mais aqui em corpo, de alguma forma permanecem vivas nos corações de quem as conheceu. E enquanto essas memórias existirem, ainda poderemos falar que ali há vida.
I couldn’t worship the god that let her fall apart
I’m not sure what I believe
Well I think that’s understood
But I know she’s looking out for me
The way she said she would
*(Eu não consegui adorar um Deus que te deixou desmoronar/Eu não tenho certeza no que acredito/Bem, eu penso que está entendido/Mas eu sei que ela está cuidando de mim/Do jeito que ela disse que faria)
Em sua reta final, Stage Four ainda trata de outras fases do luto – mas ainda muito longe de qualquer superação ou conformação. Afinal, há como realmente sentir essas coisas em sua plenitude?
O próprio Jeremy chegou a falar em uma entrevista à New Noise Magazine que não acredita que haja uma data final para um luto ou qualquer sofrimento similar, apenas períodos de maior tranquilidade em como se lidar com a perda.
Essa busca por um momento de paz é tema de “Softer Spoken”, que encontra o mais próximo de um companheirismo em “Posing Holy” nas palavras que antecedem a bela despedida do álbum: “We’ll find connections through extensions to not feel so alone” (Vamos encontrar ligações para não nós sentirmos tão sozinhos).
Sobretudo quando falamos de “Skyscraper” – que era a última canção antes da faixa bônus “Gather” ser disponibilizada na versão Deluxe – responsável por uma sonoridade totalmente diferente do hardcore, com influências do rock alternativo e do folk e recheada de diferentes contrastes vocais, graças à participação especial da cantora Julien Baker (Julien Baker & Torres e boygenius).
Essa música é responsável por colocar o quarteto em um momento raro de tranquilidade, com direito a um espaço de reflexão sobre a mortalidade humana ao som dos repetidos versos: “You live there…under the lights” (Você vive lá, debaixo das luzes), que simbolizam nossa finitude ao redor da clareza do sol e das luzes da cidade.
Dessa forma se encerra “Stage Four”, um álbum que te faz chorar, se identificar e desabafar ao entorno de músicas que refletem o luto de Jeremy e que gera conexões através desse sentimento de vazio e perda que é tanto pessoal quanto universal. Como ele mesmo disse em uma entrevista:
“Se eu estivesse no lugar deles e sentisse que me conectei com um álbum por causa do sofrimento que estava passando, e eu vi uma pessoa da banda que escreveu esse disco, eu faria a mesma coisa. Eu compartilharia!”