Atualizado em: novembro 29, 2025 às 10:04 am
Por: Arthur Coelho
A primeira vez que li o nome “a terra vai se tornar um planeta inabitável”, logo pensei que se tratasse de uma banda punk, hardcore ou de algum desses subgêneros caóticos. Mas, para minha surpresa, ao ouvir o som deles me deparei justamente com o contrário: músicas atmosféricas, refinamento instrumental e influências bem organizadas. Pelo que mostram os lançamentos cronológicos do grupo paulista, eles começaram com referências mais próximas do shoegaze — também por conta da produção independente — e agora avançam para algo alinhado ao curioso universo do post-rock.
Isso fica ainda mais evidente no novo EP, ident II dades, lançado pelo selo independente Quitus. Ele apresenta um som mais polido que os trabalhos anteriores — o disco autointitulado (2023) e o EP o fim é um começo (2024), gravado em conjunto com a banda Magnolia.
Além da produção mais nítida, o EP evidencia a qualidade técnica do quarteto João Zablonski (baixo e voz), Felipe Amaral (bateria), Carlos Eduardo (guitarra) e Guilherme Oliveira (guitarra). Essa clareza é fundamental para ressaltar a nova sonoridade do grupo que, mesmo com mudanças, não abandona o experimentalismo. Ident II dades não se prende a um gênero — apesar da forte presença do post-rock nas primeiras faixas — e combina referências distintas sem deixar pontas soltas. Tudo isso de forma criativa, te cativando por meio de um som que parece carregar um conceito maior: a multiplicidade de identidades.
A abertura “espaço/tempo” funciona como um prólogo da faixa seguinte — que apenas inverte a ordem das palavras do título — e entrega uma jam instrumental viajante em todos os sentidos da palavra. Ouvir sua continuação, agora estendida, é como fazer uma conexão interplanetária: ver a Terra de longe, com certo distanciamento, e sem preocupação sobre para onde a música vai te levar.
A execução de “tempo/espaço” é cinematográfica — mas não no sentido frio e contemplativo que o termo às vezes sugere. A faixa combina admiração e energia, juntando riffs potentes, vozes suaves e letras disruptivas. Vocais e instrumentos alternam protagonismo sem disputa, definindo com precisão quem aparece em cada momento. Há trechos em que cada elemento se destaca separadamente, e outros em que tudo converge. Isso é raro dentro do post-rock, gênero no qual muitas bandas não conseguem encaixar vocais sem comprometer a estética.
A viagem espacial continua (em) “distante”, com uma letra introspectiva conduzida por uma progressão emocional crescente: “Mas a gravidade vai me puxar pra aquele espaço / Onde não existo além das paredes do meu quarto”. Ela flui sobre arranjos leves, mas que culminam em um momento final de flerte com o metal — um pico que deixa um gostinho de quero mais.
Na segunda metade do EP, o quarteto nos devolve à Terra, mas ainda brinca com nossos sentimentos. O interlúdio “94” começa com a troca de fitas e, logo depois, nos envolve em falas sobre amores, nostalgia e fugas — algo que o EP realiza com maestria. As vozes surgem como fragmentos de lembranças:
“entre uma fuga e outra você vai conseguir se divertir”
“você vai me procurar em todas as garotas / em todos os bares / em todas as ruas”
“aí um dia, depois de muito tempo / em um lugar qualquer / você vai me ver”
“mas vai achar que eu sou uma visão”
“e eu vou embora…”
É exatamente quando a fita “trava” que “Santana 1994” começa, dando sequência direta à história introduzida no interlúdio. Se “espaço/tempo” era uma prévia instrumental, “94” funciona como sinopse de uma história de amor frustrada. Agora já não estamos mais fora de órbita, e sim diante de uma memória dolorosa que poderia ter acontecido em Maringá, Limeira, Belo Horizonte ou em qualquer outro lugar onde alguém já teve o coração partido.
Na despedida, “excursionista selvagem”, acompanhamos a história de um homem que retorna de sua viagem espacial e encontra paz em um novo momento da vida — mais especificamente nos belos acordes da própria canção. Aqui, o grupo mostra como suas identidades são múltiplas na hora de criar: introspectivo, ruidoso, atmosférico, cru, emocional.
A terra vai se tornar um planeta inabitável firma-se como um dos nomes mais inventivos da cena independente atual — e ident II dades consolida isso com força. Um EP que abraça o espaço, a memória, a linguagem e o coração humano com a mesma intensidade.
A terra vai se tornar um planeta inabitável está entre os Melhores do Ano do Um Outro Lado da Música!