Atualizado em: dezembro 19, 2025 às 9:31 pm
Por Arthur Coelho
Já não é surpresa para ninguém que vivemos em uma era que prioriza o consumo rápido e ágil de mídias em escala massificada — e, na música, isso certamente não seria diferente. Seja pela preponderância dos algoritmos das redes sociais, pela escassez de tempo ou pelas dinâmicas predatórias do capitalismo tardio, o fato é que nossa relação com a música mudou. E essa realidade se mostra ainda mais brutal quando observada pela perspectiva do músico. Se, décadas atrás, a arte já era tratada como mercadoria desde o advento da indústria cultural, hoje ela ocupa uma categoria ainda mais específica e depreciativa. O mainstream dita fórmulas prontas de verso/ponte/refrão, impõe minutagens restritas a três minutos (e olhe lá) e exige ganchos previamente calculados. Isso sem sequer nos aprofundarmos nos inúmeros problemas implicados pelo Spotify e outras plataformas, que se apropriam das músicas como produtos de comércio, sem recompensar seus idealizadores.
Isso, porém, não significa que não existam manifestações artísticas que explorem a musicalidade para além desses padrões superficiais. Felizmente, elas sempre existirão. Afinal, onde há imposição, há também reação e negação desses mesmos valores — seja de forma consciente e articulada, construída no objetivo de transgredir essas normas, ou de de maneira espontânea, em criações que buscam, antes de tudo, a expressão máxima da criatividade sem visar qualquer limite ou instrução na hora de criar. É a palavra criação em sua máxima potência de dar vida a algo novo. Seja qual for o caso, o importante é que, mesmo por caminhos distintos, ambas acabam atingindo o mesmo objetivo de romper com a superficialidade da “música de plano de fundo” ao estabelecer uma conexão profunda com o ouvinte.
Ao longo de 2025, falamos por aqui sobre discos que se colocam frontalmente contra essa lógica — “Panopticon”, do Isis, e “Linguagem”, do EATNMPTD, para citar alguns exemplo. E, agora, já na reta final do ano, seguimos nesse percurso com “Silver Blue“, um trabalho que desafia o usual de forma singular, propondo músicas que se estendem, respiram e recusam a pressa. “Silver Blue“ é o segundo álbum do Throe, projeto musical liderado pelo também escritor Vinícius Castro, o Vina, na guitarra, programação e baixo. O disco conta ainda com as participações de Vellozo (baixo), Juliana (bateria), Guix (guitarra) e David Menezes (baixo), que se alternam nos instrumentos ao longo das cinco faixas que, juntas, ultrapassam os 40 minutos de duração. O trabalho saiu em parceria selos independentes Burning London e Deathtime Records. E, assim como os lançamentos anteriores, é totalmente instrumental, com o Throe transitando entre o post-rock/metal e o shoegaze na hora de representar sentimentos e desejos que só não se perdem no distante, porque são transformados em algo maior.
Ou nas palavras mais poéticas do post de divulgação da gravadora e banda:
Trata-se de “uma dança de nós desfeitos e refeitos por um único e duradouro fio: o das memórias”.
Tudo começa com a faixa-título, que se estende por quase 13 minutos e abre um leque amplo de variações sonoras. O que se inicia limpo, quase como um indie rock contido, aos poucos se transmuta em uma valsa etérea, conectada à nostalgia por meio de passagens que atravessam o metal, o atmosférico e as diversas texturas digitais. O resultado é uma soma que se canoniza em uma camada densa, capaz de transformar a junção de ruídos em um delicado e belo clima chuvoso. Essa faixa inicial já evidencia uma das grandes virtudes do Throe: a morte do protagonismo. Em vez de um centro fixo, o ouvinte é guiado por uma fragmentação de sons, instintos e emissões que deslocam constantemente o eixo emocional da escuta. A ausência de vocais ao longo de todo o disco não é apenas estética, mas conceitual: uma escolha que intensifica os principais elementos de post-rock, metal atmosférico e shoegaze — gêneros fundamentais para o projeto de Vina.
Quando a música atinge seu momento mais pesado, surge uma dinâmica até então inédita: guitarras mais densas, riffs bem definidos e um peso que soa quase como um chamado. É como um alerta emitido em forma de distorção — sirenes afinadas em tons graves que despertam algo interno, íntimo e difícil de nomear. Mas a faixa não se encerra aí. Pelo contrário, ela se dispersa em novos ciclos e manifestações, encontrando nos teclados um caminho para o desfecho: um fechamento gradual, decrescente e quase letal. É nesse fluxo que “Holding Hands” surge, reafirmando o princípio do não protagonismo que atravessa todo o disco. Aqui, a construção se coloca a serviço da ambientação. Reverberações na caixa, pausas calculadas e sentimentos nostálgicos/oníricos conduzem o ouvinte por caminhos desconhecidos. O clímax é constantemente adiado, funcionando como um prazer lento e quase contemplativo de um gozo profundo.
Mais do que isso, a faixa — que sugere o contato físico já no título — brinca com a percepção sensorial. Os pratos se deslocam entre os canais direito e esquerdo do estéreo, os bumbos oscilam em volume e as guitarras soam como um fade-out contínuo na produção assinada por Vina em parceria com David Menezes. Assim, “Holding Hands” sugere que esse dar as mãos não se refere ao romantismo, mas ao transcendental: dar as mãos a algo maior, a um universo expansivo. Mesmo em sua calmaria, a música carrega uma grandeza comparável apenas à Via Láctea — destino final ao qual o ouvinte chega após seus sete minutos. E já que estamos nesse cenário interplanetário, é justo que “Rêve” — “sonho”, em francês — nos leve a tocar as estrelas. Sem pressa alguma, a faixa se inicia em uma estética quase lo-fi, com batidas digitais e guitarras minimalistas que se espalham suavemente em novas camadas.
O mar calmo inicial, porém, logo se transforma em raios e ansiedade, especialmente com a entrada de uma bateria de veia punk que adensa o instrumental. Esse sonho não é sereno. Ele é inquieto, hiperativo e pulsante. Mas, ainda assim, não perde a beleza em seu brilho: seja pelos efeitos cuidadosamente trabalhados ou pela cadência que se recusa a deixar os sonhos morrerem sem antes oferecer algum tipo de diversão. Afinal, no limite, fazer o que se gosta também é — e talvez principalmente — se divertir com aquilo.
Se pensarmos as faixas de Silver Blue como uma narrativa contínua, a agitação de “Rêve” encontra seu oposto emocional em “Birds”. Aqui, a melancolia lembra o universo do Have A Nice Life — uma referência evidente do projeto — em diálogo com a névoa shoegaze de bandas como o Slowdive, resultando em um experimentalismo triste e quieto. Em uma espécie de antítese à faixa anterior, “Birds” puxa o ouvinte pelo braço rumo ao fundo do poço, conduzindo-o a um abismo que engole lentamente, de forma ruidosa e mastigada. Até que, exaurido, ele se dissolve em ruídos que soam como ácidos estomacais, simbolizando o fim de uma existência sensível.
O fundo do poço, no entanto, não é completamente silencioso. Dele emergem sons estranhos e lentos que parecem apontar para algo — ainda que esse algo não seja explicitado pela música, mas pelo próprio ouvinte. “Giz”, a faixa final, se constrói a partir do silêncio e de pausas prolongadas que potencializam sua carga emocional. É nesse espaço em branco que o ouvinte projeta suas próprias emoções, dúvidas e divagações.Talvez essas projeções encontrem eco nos sons repetidos em diferentes frequências, nas guitarras abafadas e na sensação deliberada de incompreensão. Durante seus nove minutos, é difícil decifrar exatamente o que acontece, mas é impossível não sentir que algo ali se move dentro de nós.
Seja isso bom ou ruim, o fato é que (quase) tudo é passageiro — e nenhuma conexão é eterna. “Giz” caminha rumo à dissolução, por um lado que talvez fosse melhor representado pela figura de um apagador atravessando um quadro rabiscado: tudo se transforma em borrões cinza e brancos até alcançar um lugar que é… vazio. No silêncio do fade-out que encerra “Silver Blue“, resta um profundo sentimento de renovação — vindo de um álbum que parece não pertencer totalmente à nossa contemporaneidade.