Atualizado em: junho 27, 2025 às 2:30 pm
Por Victor José
Nunca vou me esquecer da primeira vez que escutei a música “In the Flat Field”. Medo, frio,
melancolia, agressividade, confusão, drama, peso e algo de liberdade. Eu tinha 16 anos, cheio de coisas na cabeça, era inverno e aquilo mexeu de verdade comigo. Até hoje, foi uma das poucas vezes em que um som me fez repensar tão a fundo os desdobramentos que o rock é capaz. Havia alguma coisa ali que me tirava de qualquer tipo de convencionalidade, ainda assim com uma roupagem sedutora.
O Bauhaus faz música de um jeito único — e é uma besteira absurda pensar apenas no termo “gótico” quando se fala sobre essa banda fundamental. É inegável a qualidade e a importância do longo single “Bela Lugosi’s Dead”, mas o grupo vai muito além disso: a discografia é bastante interessante.
Formado por Peter Murphy (vocais), Daniel Ash (guitarra), David J (baixo) e Kevin Haskins (bateria) em 1978, em Northampton, na Inglaterra, o Bauhaus durou até 1983. Nesse período, lançaram quatro álbuns de estúdio, além de um ao vivo.
Estética, ruído e expressão
O LP de estreia, “In The Flat Field”, lançado pelo selo 4AD em 1980, mostra uma banda altamente artística, vigorosa e aberta a possibilidades diversas. Ali, percebe-se com clareza as influências de Roxy Music, Sex Pistols, Kraftwerk, Velvet Underground e David Bowie. Some tudo isso ao expressionismo alemão e a uma boa dose daquela vibe cinzenta dos britânicos, e você tem o Bauhaus — no som e no visual. A música do grupo evoca uma personalidade forte, convicta de sua estética.
Começando por “Double Dare”, percebemos de cara que não estamos diante de uma banda convencional. O baixo distorcido, a levada inusitada da bateria e a guitarra fragmentada — que, sem dúvida, influenciou a galera do noise e pós-rock — embalam a voz superexpressiva de Murphy, tão densa, tétrica e dramática quanto o restante do arranjo, mas ainda assim perfeitamente coerente.
Essa corajosa fórmula segue sem perder o gás na faixa-título, um clássico alternativo. Já “God in a Alcove” sugere um som menos denso, meio noir, enquanto “Spy in the Cab” evoca uma profunda melancolia, em contraste com as dançantes “St. Vitus Dance”, “Small Talk Stinks” e “Dive”, essa com direito a um sax todo torto e bem legal de Daniel Ash. Ao longo de todo o disco o Bauhaus oferece pequenas novidades, seja um ruído esquisito, um timbre diferente de baixo ou algum instrumento não convencional.
Mas a banda nos faz dar o braço a torcer para o clima gótico na sinistra “Stigmata Martyr”, que, com sua sonoridade beirando o heavy metal, simula uma crucificação com direito a latim, gemidos, berros e tudo mais. O disco termina com outra faixa meio macabra, “Nerves”, em que um piano assume o papel principal da banda com um riff pegajoso e aponta para as várias experimentações que abordariam nos próximos álbuns.
É interessante o fato de a própria banda ter produzido “In The Flat Field”. Aparentemente, a liberdade era total, e isso se reflete no som. Não há nada naquele LP que você possa dizer que é uma repetição. Impressiona a coragem da banda, que, mesmo com essa proposta, conseguiu aos poucos atingir um público considerável, influenciou muita gente e até emplacou alguns singles nas rádios da época.
Do desprezo à consagração
Mas seu caminho não foi nada fácil. Na época do lançamento, “In The Flat Field” foi trucidado por parte da crítica britânica — Andy Gill, crítico da NME, por exemplo, disse: “Nove gemidos e contorções sem sentido, desprovidos até mesmo do mais superficial traço de interesse, um disco que merece todos os adjetivos condenatórios geralmente lançados contra os ‘modernistas’ sisudos”… E isso diz muito mais sobre o conservadorismo da imprensa musical do que sobre o disco em si.
A verdade é que o álbum não fazia concessões, não tentava agradar e nem se explicava. Por isso, com o tempo, acabou sendo redescoberto e reconhecido como uma obra sem precedentes, um divisor de águas. Hoje, é praticamente unanimidade entre quem se debruça sobre a história do pós-punk e do rock alternativo.
Vale falar sobre a capa, que é uma foto em preto e branco de Duane Michals chamada “Homage to Muybridge”. Nela há um homem nu curvado em movimento, evocando tensão, vulnerabilidade e estranhamento. É a cara do álbum: minimalista e provocativa, antecipando a estética crua e artística do disco, rejeitando qualquer apelo comercial.
O grupo chegou a se reunir duas vezes: uma em 1998, quando lançaram o maravilhoso ao vivo “Gotham”, e outra em 2008, quando trabalharam juntos novamente em estúdio com “Go Away White”, que não é lá essas coisas, um pouco desnecessário.
Também vale lembrar que do Bauhaus nasceu o Love and Rockets, que é a mesma formação, mas sem Peter Murphy. O som é bem mais acessível e bastante diferente da antiga banda, com pegada própria. Tem coisas legais e vale muito dar uma ouvida.
Eu poderia ter escolhido qualquer grupo rotulado como “gótico”, mas o Bauhaus é, pra mim, a maior prova de que essa fase do rock foi uma das mais mal interpretadas — tanto pelo público quanto pela crítica. Olhando de perto, não é exagero dizer que, a partir dessa vertente (inclua aí Joy Division, Siouxsie and The Banshees, The Cure etc.), surgiu um dos momentos mais criativos da indústria pop.
Em pouco tempo, o Bauhaus mostrou que a arte soturna também pode ser carregada de nuances, camadas e intensidade, sem cair na caricatura nem parecer bobagem de moleque.
O marco zero do gótico?
Embora o Bauhaus nunca tenha gostado do rótulo, não dá para ignorar que In The Flat Field é considerado por muitos o primeiro álbum genuinamente “gótico” da história. Essa definição acabou surgindo mais pela influência que o disco exerceu do que por uma proposta consciente da banda. O som cru, os temas sombrios, a teatralidade e a estética visual criaram, sem querer, a base sobre a qual muitos outros grupos construíram esse subgênero. Ou seja: o Bauhaus abriu uma porta, mas seguiu em frente antes que ela se fechasse.
Ouça o disco abaixo. Esta versão traz uma porção de ótimos singles e b-sides. In The Flat Field, na íntegra, vai das faixas 2 a 10.