Atualizado em: abril 24, 2025 às 2:06 pm

Por Victor José

No universo do pop rock, poucos artistas conseguem soar tão convincentes, estéticos e artisticamente densos — e, ao mesmo tempo, tão livres de rótulos — quanto Beck. Pensa bem: quantos têm essa habilidade? Bowie, Björk, Kate Bush, Prince… dá pra contar nos dedos.

Beck transmite aquela sensação rara de que pode fazer qualquer coisa soar bem. Brincar com gêneros, reinventar fórmulas e transformar tudo isso em grandes álbuns não é tarefa fácil — mas ele fez isso já em “Mellow Gold” (1994) e, com ainda mais impacto, em sua obra-prima “Odelay” (1996). Rock, rap, blues, folk… Que raio é aquilo? É Beck. Talvez sem querer, ele apontou para o hibridismo como o verdadeiro caminho para o futuro.

E na virada do milênio Beck estava com uma carreira consolidada, recheada de bons discos, premiações e milhões de cópias vendidas. Nada mau para alguém com uma sonoridade tão flexível. O grande público comprou sua ideia maluca, e cada trabalho era uma verdadeira surpresa, como “Midnite Vultures” (1999), uma releitura de sons da música negra, como funk e soul. Eis que em 2002 ele surge completamente diferente, com um dos discos mais lindos das últimas décadas.

A virada emocional de Beck

Embora pareça desconexo na discografia de Beck até então, “Sea Change” pode ser visto como uma evolução do compositor, que nunca escondeu sua queda por violões e melodias mais explícitas, como podemos conferir no incrivelmente tosco “One Foot In The Grave” (1994), trabalho com pegada lo-fi voltado ao folk torto que ele gostava de assumir.

Em “Sea Change” temos uma quantidade absurda de emoção, arranjo de cordas, grandes vocais e um Beck mais maduro, sério e melancólico. Pode ter certeza que ninguém esperava um disco como este.

Naquele período, ele enfrentava o fim de um relacionamento que durou nove anos, o que logo de cara fez muita gente comparar “Sea Change” com “Blood on the Tracks” (1975), emblemático álbum de Bob Dylan que também foi inspirado em uma separação. Na verdade, nem é preciso saber disso para sentir nas faixas. Ele traduziu essa situação com uma rara habilidade.

É um disco fácil de ouvir e assimilar, e embora tenha essa densa carga de lágrimas, emana o forte magnetismo que as melodias tocantes carregam. Tudo é bonito: os vocais, as letras, as cordas, a simplicidade da banda e a incrível produção de Nigel Godrich. Vale destacar seu papel nesse trabalho, já que quase todas as faixas carregam uma atmosfera sutil e peculiar — algo que claramente leva sua assinatura. Não por acaso, ele já havia trabalhado com nomes de peso como Paul McCartney, R.E.M., Radiohead e Roger Waters.

Perceba em “The Golden Age” a carga daquele som. Tão simples e tão cheio, coeso, bonito e direto. É um belo jeito de abrir um disco. Esta já é um clássico contemporâneo. Você que conhece o trabalho de Beck antes de “Sea Change”, imagina a estranheza que deve ter sido escutar essa beleza logo de cara? A maturidade sonora é gritante (não confundir aqui com simplicidade).

Uma espécie de groove sombrio dita as regras em “Paper Tiger”, uma das melhores da track list. Um arranjo de cordas absurdo dá uma cor inédita em qualquer canção já feita por Beck até então.

“Guess I’m Doing Fine” meio que reassume a roupagem de “The Golden Age”, quase que uma música irmã. Outro sucesso, outra grande música, outro momento deparada obrigatória no catálogo do compositor. Com uma melodia dessa grandeza é muito difícil dar um tiro fora.

O momento mais tocante do álbum está reservado para “Lonesome Tears”, que faz jus ao título e realmente emociona. São vários os motivos para te levar a este estado de espírito, seja a letra escancaradamente pessoal, o modo que ele canta, o arranjo de cordas choroso, a dinâmica sinuosa… Essa é difícil de passar ileso, sério.

“Lost Cause”, outro grande sucesso, ainda soa adequada ao contemporâneo (o disco todo na verdade). Uma assumida desilusão encarna no espírito de Beck com uma forte convicção, o que reforça a assinatura autobiográfica em “Sea Change”­ – só tendo vivido aquilo de fato para fazer coisas como “Lost Cause” se mostrar como algo real. Esse mesmo estado de espírito soa forte em “Already Dead” e seu interessante arranjo de violão.

Seguindo a mesma pegada quase “road movie” de “The Golden Age” e “Guess I’m Doing Fine” temos outra excelente faixa, “End Of The Day”. A força de “Sea Change” está justamente em não depender de reviravoltas — ele cresce porque é honesto, coeso e inteiro. Não se trata de novidades atrás de novidades, como nos outros álbuns de peso de Beck. Nessa obra, as coisas funcionam porque são orgânicas, os sentimentos não estão encobertos, e é isso que fascina.

Com um lindo arranjo de cordas fornecido por David Campbell, pai de Beck, “It’s All In Your Mind” vem como um ressurgimento. Isso porque ela já havia sido lançada como single em 1995, sendo uma das gravações de “One Foot In The Grave”. E isso é muito curioso, porque comparando as duas podemos ver como existem várias personas em Beck: enquanto que a versão de 1995 soa como uma demo atraente, a faixa de 2002 é um artista por inteiro. Grande momento.

É inevitável não o comparar com Nick Drake em “Round The Bend”. A densidade da orquestra que preenche a faixa e até mesmo a melodia lembra muito “River Man”, clássica canção do cantor britânico. Mas mesmo que soe parecido, não é um caso constrangedor.

Dá até para achar um resquício de Coldplay (da fase boa) em “Sunday Sun”, que com sua batida eletrônica se mostra como o momento mais destoante de “Sea Change”, ainda que muito bem assimilado por todo o restante do trabalho. O refrão é arrebatador.

Ainda que realmente boas, sinto as duas últimas, “Little One” e “Side Of The Road”, meio que sobrando na tracklist. Mas merecem atenção, sobretudo a última, pelo trabalho de slide e aquele pouco de blues que persiste em Beck Hansen, esse artista incrível.

A persona que faltava

Para muitos, “Sea Change” é o melhor trabalho de Beck. Para outros, é um ponto fora da curva. Há quem o veja como um dos discos mais importantes da década — e, em listas como a da Rolling Stone, ele aparece entre os melhores álbuns de todos os tempos.

Além do sucesso de crítica, o disco também redefiniu a presença de Beck nos palcos. A turnê de “Sea Change” foi marcada por apresentações mais intimistas, com cenografia minimalista e sets mais acústicos — um contraste com o frenesi dos shows anteriores. Isso evidenciou, ao vivo, o quanto o artista estava disposto a mergulhar de verdade nessa nova linguagem emocional, e não apenas experimentá-la em estúdio.

De certa forma, o fim do relacionamento fez bem ao artista: ele transformou a dor em arte com uma sinceridade rara, e ainda alcançou mais sucesso. “Sea Change” revelou ao mundo talvez a única persona que ainda faltava em sua trajetória multifacetada — a do homem vulnerável, sem escudos, entregue aos sentimentos.