Atualizado em: abril 3, 2025 às 3:53 pm
Por Victor José
Hüsker Dü é uma banda estranha, ao menos pra mim. Evoca algo que não sei explicar. A guitarra ardida, bem cítrica e abrasiva, uma certa doçura velada nas entrelinhas, encoberta pela raiva inerente àquela cena e àquele recorte no tempo… Realmente, alguma coisa no tempero do trio faz a gente querer se aprofundar naquela atmosfera. Tem algo de encantador ali.
Essa mistura de agressividade com ordem e uma alta dose de talento melódico fez a cabeça de muita gente na época e ainda hoje. Poucas vezes o hardcore atingiu essa maturidade estética.
Formado em Minneapolis, Estados Unidos, em 1979, o Hüsker Dü é Bob Mould (guitarrista e vocalista), Grant Hart (baterista e vocalista) e Greg Norton (baixista). Dois ótimos compositores apresentam propostas diferentes de estética, sendo Hart mais voltado para uma pegada pop e Mould com os pés na estética bruta do hardcore.
Essa rivalidade por si só já é um aspecto fundamentalmente rico desse trio, embora isso e as drogas tenham posto um ponto final nessa história.
Ainda assim, mesmo quem não é ligado em punk ou hardcore reconhece de cara a força coesa do Hüsker Dü. No auge, até Robert Plant se declarou fã. E o impacto reverberou em toda uma geração de bandas que veio depois: Dinosaur Jr., Mudhoney, Nirvana, Pixies, Weezer, Jesus and Mary Chain… e a lista vai longe.
A banda foi construindo, tijolo por tijolo, uma reputação invejável nas rádios universitárias e no cenário alternativo americano. Nos primeiros anos, os trabalhos eram mais crus, com uma sonoridade alinhada ao hardcore direto de contemporâneos como Minor Threat e Black Flag.
Com o tempo, esse som foi se transformando — ganhando melodias mais claras, refrões pegajosos e, em certos momentos, um viés quase pop. Muito disso vinha da influência das bandas psicodélicas de folk rock dos anos 1960, sobretudo Beatles e Byrds, que expandiram o horizonte harmônico do trio.
Essa virada sonora apareceu com força total em “Zen Arcade” (1984), um LP duplo ousado, gravado em apenas 85 horas, que misturava punk, folk, pop e até mantras hindus sob uma identidade própria e surpreendente. Com 23 faixas e uma narrativa conceitual sobre um jovem em crise, o disco rompeu as barreiras do hardcore e colocou o Hüsker Dü no radar da crítica como algo além do punk.
Muita gente considera esse o trabalho mais ambicioso da banda — e com razão. Mas aqui, meu foco é o sucessor direto: “New Day Rising” (1985).
Maturidade e rebeldia em equilíbrio
A tracklist é redonda — uma faixa melhor que a outra, um som de molecagem super maduro, se é que isso faz algum sentido. Mas é esse o espírito da coisa. São 15 músicas para ouvir no repeat. O trio sabia exatamente o que estava fazendo e conhecia bem o potencial daquelas composições. Harmonias bem estruturadas, dramaticidade na medida certa e, sempre que possível, um cuidado especial com os pequenos detalhes. Isso faz toda a diferença.
Em “Celebrated Summer”, por exemplo, a banda intercala a sujeira com uma vibe mais romântica, quase contemplativa, e se dá ao luxo de inserir um violão de 12 cordas para criar uma atmosfera mais intimista. Pode parecer pouco ou batido hoje, mas pense no efeito disso em 1985, dentro daquele contexto. E como funciona bem.
“I Apologize” é quase um modelo ideal para qualquer banda que segue essa estética: refrão grudento, guitarra pulsante, harmonia vocal simples e eficaz. Se você desacelerar a base, ela vira um power pop clássico. “If I Told You” segue o mesmo espírito e reforça essa sensibilidade melódica por trás da aspereza.
“The Girl Who Lives on Heaven Hill” está entre as melhores gravações da banda. E, embora pareça simples e direta, é difícil definir com precisão o que está acontecendo ali. Apenas ouça.
Em “Books About UFOs”, eles vão além e arriscam um piano. A levada tem aquele sabor irresistível que lembra músicas de sunshine pop, mas aqui totalmente recontextualizado. É quando se percebe claramente a importância de cada integrante: o baixo de Greg Norton, sempre intuitivo e melódico, dialoga com a bateria sólida de Grant Hart, enquanto Bob Mould colore tudo com sua guitarra azeda — como um spray que dá textura ao som. E ainda tem a voz de Hart embalando tudo com leveza. Hüsker Dü é a prova cabal de que não é preciso reinventar a roda para ser foda.
“Perfect Example” traz ecos de R.E.M., contemporâneos e colegas de circuito. A combinação de guitarras dobradas com violão era uma tendência naquela época — e a banda tira proveito disso sem perder identidade.
Já a faixa-título, “Watcha Drinkin” e “Plans I Make” carregam mais da persona agressiva da primeira fase do Hüsker Dü, marcada pela ferocidade e urgência. São músicas que dão fôlego ao disco, fechando o pacote com força. No fim das contas, é difícil não se conectar com pelo menos uma das 15 faixas. Quase certo que alguma vai bater.
Após “New Day Rising”
Eles lançaram ainda “Flip Your Wig” (ainda em 1985), “Candy Apple Grey” (já por uma grande gravadora, em 1986) e “Warehouse: Songs and Stories” (1987), um disco duplo que marcou o fim da linha. Naquela altura, a relação entre Bob Mould e Grant Hart já estava por um fio.
Apesar de tudo o que construíram, a banda ainda é pouco conhecida fora dos círculos mais atentos da música alternativa. E é uma pena. Se você nunca ouviu falar, arrisco dizer que “New Day Rising” é o melhor ponto de partida: urgente, barulhento, sensível, direto ao ponto. Um disco que mostra como o punk podia crescer em significados sem virar outra coisa.
É curioso como tantas bandas só ganham o reconhecimento que merecem quando já é tarde demais, e muitas vezes só depois da morte. Mas o tempo, esse sim, costuma colocar tudo em perspectiva. Bob Mould segue em atividade, Greg Norton voltou aos palcos, e Grant Hart nos deixou em 2017. Seu legado, no entanto, continua firme no volume alto de quem sabe ouvir. Temos aí uma das bandas mais importantes dos últimos 50 anos.