Atualizado em: março 27, 2025 às 11:10 am
Por Victor José
Quem escutava Jorge Ben (ainda sem o Jor) de “Samba Esquema Novo”, com suas letras singelas, ou mesmo o via como “membro honorário” do tropicalismo, não imaginaria que ele se dedicava a estudos profundos e esotéricos.
Quando garoto, Jorge se dividia entre a paixão por futebol e a devoção à espiritualidade. Chegou a ser seminarista por dois anos em busca de conhecimento sobre São Tomás de Aquino, por quem tinha admiração. Até mesmo aprendeu latim para se aprofundar nas obras do santo, como por exemplo a “Suma Teológica”, que trata da natureza de Deus e Jesus Cristo, e das questões morais.
Assim como o cristianismo, a alquimia também fazia sua cabeça. Jorge vivia entre especialistas e estudiosos da prática antes de ingressar na música. Disse ele certa vez:
“Tinha um grupo de adeptos maravilhosos, eram da América do Sul. E tinha um brasileiro, professor ou reitor de faculdade, de São Paulo. Junto com um grupo de adeptos da alquimia, ele viu uma transmutação, em 1958. A todo lugar que tinha ourives, eu ia com outro amigo estudante ver como se fazia ouro. E a gente ficava indignado, pô, aquele ouro todo.”
A música como laboratório de experimentações
Assim como os alquimistas, os músicos da década de 1960 começaram a experimentar, juntar tendências e elementos de culturas diferentes. Quando em 1966 John Lennon criou a inesperada “Tomorrow Never Knows” com a intenção de fazê-la soar como um mantra tibetano, o beatle não apenas quis se impor como também desafiou o ouvido de seu público, que vinha sendo agraciado com melodias pegajosas e temas fáceis por um bom tempo.
A música era um laboratório, e as fórmulas mudavam naturalmente de trabalho a trabalho. Experimentar era uma tendência bem-vinda aos que tinham cacife, e Jorge Ben era um desses raros, capazes de fazer com que o inusitado caísse nas graças do ouvinte. Para ele, o início dos anos 1970 foi uma reviravolta tão brusca quanto a de seus contemporâneos estrangeiros.
Jorge abriu as portas para o esoterismo e temas não convencionais no gênero que fazia, desbravando uma nova trilha àqueles que se aventurassem a expandir os conceitos da MPB. O resultado foi “A Tábua de Esmeralda”, no qual se via o carioca em seu momento mais criativo e venerado.
A gênese de “A Tábua de Esmeralda”
Longe de abordar apenas o trivial, Jorge queria para este trabalho uma diversidade de signos em conexão. Uma combinação de agricultura celeste com astrologia, Zumbi e vida extraterrestre; Nicolas Flamel com Gato Barbieri.
Embora complexo na teoria, a intenção de Jorge era singela como sempre: arquitetar uma experiência sonora para que quem escutasse se sentisse bem, apenas isso. Esse desejo de escancarar seus interesses pessoais em sua música era antigo, mas é claro que não foi fácil de conseguir. Tendo em vista que aqueles temas seriam pouco rentáveis no mundo da indústria fonográfica, naturalmente a ideia não convenceu de cara alguns executivos da gravadora, que bateram o pé para que o projeto não saísse.
O compositor sempre afirmou que muitos na gravadora Philips relutavam em aceitar seus trabalhos, com a justificativa de que não venderiam bem. Mas os astros estavam a seu favor. Justamente por saber do pouco apoio vindo de alguns da empresa, Jorge decidiu vender seu peixe diretamente com André Midani, presidente da gravadora na época, explicando detalhadamente do que se trataria o LP.
Baseando-se nas palavras de Hermes Trimegisto e sua “celeste tábua de esmeralda”, a qual consta o texto que deu origem à alquimia islâmica e ocidental, Jorge examinou: se o místico afirma que tudo é adaptação, por que afinal não adaptar sua arte em uma alquimia musical? A ideia era essa. Midani, grande admirador de tudo o que Jorge produzia, deu carta branca ao aconselhá-lo a gravar as músicas exatamente como ele bem entendesse. Ao receber a benção, o carioca entrou no estúdio no primeiro semestre de 1974.
Cercado de uma aura festiva e permeado pelo suingue, Jorge e sua banda criaram para esse álbum um clima híbrido e único, no sentido mais literal da palavra, ao misturar a essência do ritmo brasileiro e o esoterismo universal. É aí que mora a graça de “A Tábua de Esmeralda”. Ao longo de todo o LP, o grupo segura a onda enquanto seu mestre esbanja o poder de seu violão e viaja em assuntos de seu interesse.
Nesse sentido, “Os Alquimistas Estão Chegando os Alquimistas” abre o repertório dando o tom de todo o trabalho. E mesmo mencionando “potes de louça”, “destilação”, “cadinhos” e ”regras herméticas”, a música caiu rapidamente nas graças do público, sendo uma daquelas que não podem faltar em seu show até hoje. Assim como a faixa de abertura, “Hermes Trismegisto e sua Celeste Tábua de Esmeralda” é a quintessência de sua alquimia sonora. Jorge disseca o tema declamando o texto original presente na tábua de esmeralda enquanto sua banda o apoia com um samba-rock moderado.
Os arranjos de cordas de Osmar Milito, Darcy de Paulo e Hugo Bellard que surgem ao longo do disco introduzem na musicalidade do poeta da simpatia uma profundidade que vai muito além de sua natureza rítmica. Isso acontece em “Errare Humanum Est”, uma transcendental viagem ao espaço. No cume do experimentalismo ainda sem soar prolixo (nem exagero), a canção que fala sobre sondar o além e reaviva a questão do controverso livro “Eram os Deuses Astronautas?” destoa de qualquer música já feita no Brasil. Sem dúvida, uma pérola.
Mas não é só pelo experimentalismo que o álbum é excepcional. Jorge retoma suas letras diretas e ao sambão tradicional ao recordar de seus ídolos seculares, como em “O Namorado da Viúva”, que Jorge afirma ser o alquimista do século XV Nicolas Flamel. A tal viúva da canção seria uma bela e rica mulher que botava medo nos homens, pois já havia perdido três maridos misteriosamente. Flamel foi esse quarto sujeito que topou se juntar.
Já o muso da nonsense “O Homem da Gravata Florida” representa Paracelso, outro alquimista notável, amplamente associado ao ocultismo e à filosofia hermética cultivada pelos Rosacruzes.
Ainda que focado nesse turbilhão de referências, Jorge não abriu mão dos temas amorosos nem das mulheres com nomes de flores: “Minha Teimosia, Uma Arma Pra Te Conquistar”, “Menina Mulher da Pele Preta” e “Magnólia” compõem uma trinca exemplar do pop tupiniquim. Saindo um pouco do foco alquímico, o compositor brincou com a língua inglesa na gospel “Brother”, divagou sobre o valor do tempo em “Cinco Minutos” e retomou culturas ancestrais na épica “Zumbi”, na qual o músico fez uma homenagem ao símbolo máximo da rebeldia dos escravizados.
O impacto e o reconhecimento tardio
“A Tábua de Esmeralda” não foi um sucesso de vendas como alguns de seus álbuns anteriores, embora muito elogiado pela imprensa da época. Como muitos de seus contemporâneos, o LP ganhou seu devido reconhecimento com o passar do tempo. Assim como grande parte de seu público, o próprio Jorge considera “A Tábua de Esmeralda” como o seu trabalho essencial: “Esse disco é tudo pra mim”, como diria anos depois.
Como em outros momentos cruciais, mais uma vez, o visionário Midani apostou no “cavalo certo” e saiu de uma briga com a razão. Depois de obras como “Araçá Azul”, de Caetano Veloso, e “A Tábua de Esmeralda”, ficou a impressão de que na Philips o artista podia falar e sabia que seria escutado – ao menos pelo seu patrão. Um raro caso de apoio irrestrito na cultura de consumo.