Atualizado em: outubro 29, 2025 às 8:49 am

Por: Arthur Coelho

O Circa Survive é um daqueles nomes que você conhece e logo se apega; é aquela banda que desperta a vontade de ouvir um disco inteiro e repeti-lo mais duas ou três vezes. É também um grupo que te envolve com muito sentimentalismo, letras tocantes, construções de guitarra fora do comum e batidas extremamente marcantes. Isso sem sequer mencionar os vocais potentes e únicos, que dão um charme extra ao som do quinteto estadunidense formado na Filadélfia.

Com tantos elogios, você já pode imaginar que o Circa tem uma discografia e tanto — e sim, isso é verdade. Daria para trazer cada um dos oito discos da banda para este quadro e escrever parágrafos e mais parágrafos sobre cada um deles. Mas eu não sou tão maluco assim pela banda (apesar de admitir publicamente que tenho um grande carinho). Então, me restringi a escolher apenas um título para comentar —  o que, por si só, já é uma tarefa difícil.

O Circa Survive debutou com dois discos impecáveis (“Juturna”, 2005, e “On Letting Go”, 2007), trazendo um som completamente diferente, que combinava elementos de post-hardcore com rock alternativo e progressivo, em músicas marcadas pela dicotomia entre melancolia e encanto, sob o comando do vocalista Anthony Green (ex-Saosin e atual L.S. Dunes). Seu casamento musical com outros veteranos da cena: Steve Clifford (bateria), Brendan Ekstrom (guitarra), Colin Frangicetto (guitarra) e Nick Beard (baixo), deu muito certo, e essa união de quase 20 anos (atualmente em hiato) rendeu obras memoráveis.

Nesse sentido, talvez o melhor trabalho deles para destacar seja o terceiro álbum, “Blue Sky Noise” (2010) — um título tão bom quanto seus antecessores e que apresenta uma produção mais polida, com faixas menos melancólicas (mas ainda profundamente sentimentais) em um contexto de auge técnico do grupo.

Não há muitas informações sobre os bastidores da gravação, apenas que o álbum foi produzido no Canadá, durante uma troca de gravadora, marcando o primeiro lançamento do quinteto pela Atlantic Records. Ainda assim, a impressão que fica é a de que algo mágico acontecia naquele estúdio.

“Blue Sky Noise” é um daqueles trabalhos para ouvir do começo ao fim, sem hesitação e sem pular nenhuma faixa. Não há música ruim ou cansativa aqui — muito pelo contrário. Pelo menos três ou quatro das melhores canções do Circa estão presentes neste disco. Por isso, “Blue Sky Noise” talvez seja o melhor ponto de partida para apresentar a banda a um novo ouvinte.

Circa Survive announce 'Blue Sky Noise' 10th anniversary tour

(O grupo anunciou uma turnê comemorativa em 2020, data do décimo aniversário do disco, que infelizmente não aconteceu em decorrência da pandemia do Covid-19)

Ouvir a segunda faixa, “Get Out”, é pedir para se impressionar. O que Green faz aqui nos vocais é de arrepiar o corpo inteiro. É simplesmente bela a forma como o vocalista expulsa seus demônios e o sentimento de culpa, transformando-os em raiva e energia que crescem até o momento de explosão comandada pelo instrumental. Essa é uma daquelas músicas impossíveis de ouvir apenas uma vez. Pois, mesmo que Green te peça para “sair” no refrão catártico (que também é o título da canção), a vontade é justamente a contrária: ficar preso na música, mesmo após o fim de sua duração.

Lock myself up in a room without a window
Just to see if it was any easier to breathe
I was wrong

Never underestimate the daylight
There is so much easier to breathe

(Me tranquei em um quarto sem janelas/Só pra ver se era mais fácil respirar/Eu estava errado/Nunca subestime a luz do dia/Há modos mais fáceis de se respirar)

O mesmo pode ser dito sobre “Imaginary Enemy”, single que expõe de forma poderosa a dificuldade de se relacionar com outras pessoas. A letra também pode ser interpretada como uma reflexão sobre saúde mental, descrevendo com precisão os distúrbios que nos causam ansiedade e medo por algo que sequer existe.

Essa é uma temática capaz de comover e que também é sentida em “ I Felt Free”, que resgata a liberdade individual com o fim de um relacionamento desgastante. A faixa é guiada desde os primeiros instantes por guitarras emotivas que lembram os melhores momentos de On Letting Go (2007), com o diferencial de soar de maneira mais bela do que propriamente triste.

I fell apart in your arms for the last time
And I felt free to do what I want
Because of the things you told me
Because of the things you told me, you told me
I felt free

(Desabei em seus braços pela última vez/E me senti livre para fazer o que eu quero/Por causa das coisas que você me disse/Por causa das coisas que você me disse/Eu me senti livre)

E volta a surgir em “Fever Dreams”, uma das faixas mais subestimadas do disco, que parece multiplicar sua duração de quatro minutos em camadas e passagens que se desdobram entre folk, trechos acústicos e uma percussão de tom quase tribal. O resultado é um clímax adiado, em que Green e Ekstrom revelam seus medos e pecados com poesia.

Now I must compare the consequence

end my life or just confess

I won’t last a minute in confinement

Either way I’m going to hell

(Agora eu tenho que comparar a conseqüencia/Acabar com a minha vida ou apenas confessar/Eu não vou durar um minuto em confinamento/De qualquer forma eu vou para o inferno)

Um aspecto recorrente do álbum é o uso de lugares imaginários como metáforas para sentimentos do inconsciente. Isso aparece logo na bela abertura “Strange Terrain” e nas charmosas “Through the Desert Alone” e “Frozen Creek”.


A segunda delas é a mais pesada emocionalmente, construída sobre um baixo misterioso e uma letra que trabalha a culpa em fases progressivas. Seu título resume bem a solidão de vagar pelos próprios sentimentos, reforçando o “Alone” quase como um pleonasmo.

Ouvi-la é como caminhar por partes densas do subconsciente — um sentimento que contrasta com a leveza espiritual de “Frozen Creek”, que descreve seu cenário gélido e isolado com um espírito aconchegante e belo. Não apenas pelos vocais de Green, mas pelas linhas de guitarra suaves, que emulam o calor de uma lareira em meio ao frio congelante.

As frustrações, os desejos e as expectativas do futuro ganham vida em “The Longest Mile”, que retoma a essência do Circa de equilibrar energia e melancolia. A faixa prepara o terreno para o encerramento com “Dyed in the Wool”, uma canção potente, com vocais reforçados e letras que exploram a desilusão e a dificuldade de compreender o outro.

Essa faixa ainda ganhou uma versão acústica emocionante, incluída na edição deluxe de “Blue Sky Noise” (2018), junto a outras seis faixas regravadas nesse formato e uma demo adicional.