Atualizado em: abril 17, 2025 às 3:50 pm
Por Victor José
Priorizando a versatilidade e sem se prender a rótulos, Milton Nascimento sempre buscou entregar algo particular em cada álbum que lançou. Grande parte de sua discografia — sobretudo entre 1967 e 1978, que vai de “Travessia” a “Clube da Esquina 2” — é marcada por LPs emblemáticos, originais e, quase sempre, à frente do tempo. Mas em termos de genialidade, ousadia e pretensão artística, nenhum trabalho desse longo catálogo alcança o que foi feito em “Milagre dos Peixes” (1973).
Naturalmente, é fácil apontar “Clube da Esquina” (1972), em parceria com Lô Borges, como o ponto alto da trajetória de Milton — disco que, aliás, para muita gente, já conquistou o status de “maior álbum da música brasileira”. Talvez tenha sido mesmo. Eu mesmo tendo a concordar. Mas é com o trabalho do ano seguinte que Milton realmente explode os limites da forma, numa tentativa clara de se superar artisticamente.
O resultado é o disco mais radical de uma carreira que já dura mais de 60 anos — e, possivelmente, o álbum mais denso lançado no auge da repressão política brasileira.
“Passei a usar minha voz como um instrumento”
Segundo Fernando Brant, letrista da faixa-título e uma das parcerias mais duradouras da vida de Milton, o álbum foi concebido para ser um grande passo: “Uma abertura nova, algo para assustar os desavisados e arrepiar a pele. ‘Milagre dos Peixes’ é uma atitude de revolta e de entrega. Milton está neste disco como uma criança agressiva”, disse à Folha de São Paulo quando faltavam poucos dias para o lançamento.
“Milagre dos Peixes” é uma experiência única — e isso já começa pela ausência quase total de versos. O disco é majoritariamente cantado sem palavras, resultado direto da censura imposta pela ditadura militar à maioria das letras. Milton não aceitou a proibição como impedimento: decidiu seguir com o projeto mesmo assim, desafiando a repressão com o que tinha à disposição.
No LP original, apenas duas faixas — “Milagre dos Peixes” e “Escravos de Jó” (esta com os vocais de Clementina de Jesus) — mantiveram suas letras intactas. Outras três músicas com letra (“Sacramento”, “Pablo” — cantada por Nico, irmão caçula de Lô Borges — e a instrumental “Cadê”) saíram separadamente, em um compacto que funcionava como uma espécie de bonus track luxuoso. Mais tarde, com o lançamento em CD, essas faixas seriam incorporadas ao tracklist oficial.
Sobre essa situação, Milton disse:
“É claro que as músicas tinham um teor político, mas não era nada explícito. Houve um exagero por parte da censura, porque nunca preguei que o pessoal pegasse em arma e coisa e tal; a gente só botava pra fora o nosso descontentamento com tudo, não só com o Brasil, mas com o mundo. Fiquei puto da vida quando a gravadora me propôs gravar um outro disco. Disse que não, que o disco ia sair como estivesse; se não havia letras, que as pessoas entendessem. E foi uma surpresa pra EMI Odeon em todos os sentidos, porque o disco vendeu bem, fora a repercussão que causou. Como músico, o ‘Milagre’ foi muito importante, porque foi aí que me larguei na música de uma forma diferente, passei a usar minha voz como um instrumento”.
Estilo híbrido
É um disco bastante diferente de cabo a rabo. Enquanto produto de design, o LP é irretocável. O projeto gráfico contou com uma bela capa-pôster, algo até então inédito na indústria fonográfica nacional. Dentro, umas páginas avulsas coloridas detalhavam as participações de cada faixa. Sendo assim, “Milagre dos Peixes” trazia a até então mais bem detalhada ficha técnica da indústria do disco no Brasil.
Ao todo, quarenta e dois músicos participaram das gravações, como o maestro Radamés Gnatalli, o Quinteto Villa-Lobos, Naná Vasconcelos nas percussões e a banda de jazz rock/prog local, o Som Imaginário.
Quanto às músicas, o que se pode dizer é que cada uma parece seguir um caminho híbrido, difícil de rotular. Nada aqui se encaixa em gênero algum com facilidade — e é justamente aí que mora sua força. Lembro de ter escutado “Milagre dos Peixes” pela primeira vez e tê-lo achado um dos discos mais esquisitos. É um álbum que exige escuta atenta, mais de uma vez, para começar a se revelar por completo. Mas para quem gosta de complexidade, ruídos fora do comum e nuances que escapam ao óbvio, trata-se de um exercício de imersão — desses que ficam pra vida toda e recompensam a cada nova audição.
Enquanto “Pablo nº2” soa como uma celebração latina — com palmas, coros e violões festivos —, “A Última Sessão de Música” aposta num clima de fim de festa: barulhos de talheres, conversas ao fundo e um piano melancólico criam uma ambientação nostálgica, quase teatral.
Para ouvidos mais acostumados ao convencional, “Escravos de Jó” e a faixa-título talvez sejam as portas de entrada mais acessíveis. Apesar da estrutura levemente intrincada, ambas são mais melodiosas e se revelam logo na primeira escuta. O jazz rock de “Cadê”, tocada pelo Som Imaginário, também é daquelas que pegam mais facilmente.
Já “A Chamada”, com seus efeitos vocais que evocam uma floresta psicodélica, e a poderosíssima “Carlos, Lúcia, Chico e Thiago (Eu sou uma preta velha aqui sentada ao sol)”, construída como uma orquestra vocal, estão entre as faixas mais desafiadoras do álbum. Mas justamente por isso, são também as mais únicas, intrigantes e recompensadoras.
“Tema dos Deuses” tem cara de trilha sonora de algum filme épico e faz jus ao nome pela intensidade. Ouvindo essa música dá para compreender que Milton havia previsto anos antes este amadurecimento artístico com canções como “Amigo, Amiga” ou “Meu Pai Grande”, do LP “Milton” (1970), que apresentava uma grande carga de sinestesia mesmo sem tantos recursos à disposição.
Dividida em três partes, “Hoje é Dia de El Rey” talvez seja o ponto mais alto de “Milagre dos Peixes”. Baseada na “Suíte do Pescador”, de Dorival Caymmi, a música foi concebida como um diálogo entre pai e filho — Caymmi assumiria a voz paterna, Milton, a do filho. Mas a letra original, escrita por Márcio Borges, foi censurada na íntegra. A conversa nunca foi gravada, e é uma pena. Mesmo assim, a música sobreviveu sem palavras, conduzida apenas por suas variações de dinâmica, textura e intenção. As mudanças ao longo da faixa a transformam numa verdadeira obra-prima sensorial — e talvez justamente por não falar, ela diga tanto.
Em “Sacramento” voltam as letras. Cantada por Milton num espírito meio entristecido, a canção apresenta uma sonoridade tensa que beira o tétrico, contrastando bem com a lúdica “Pablo”, a qual Nico Borges ainda criancinha canta uma letra surreal “citando pó de nuvem nos sapatos e incêndio nos cabelos”.
O risco como linguagem
De fato, em “Milagre dos Peixes” há um forte experimentalismo, mas com uma coesão interna que diferencia o disco de outros projetos igualmente ousados da época, como o também interessante “Araçá Azul” (1973), de Caetano Veloso. Enquanto o disco de Caetano propõe um mergulho na dissonância e no anti-formato, o disco de Milton organiza o caos com uma lógica interna poderosa. O risco aqui não é só uma linguagem: é também o pano de fundo, consequência direta de se criar sob ameaça, e ainda assim se recusar a ceder.
Talvez por isso tenha dado tão certo. Milton soube ousar sem abandonar a comunicabilidade emocional com o ouvinte. E mais que isso — fez isso num momento em que a liberdade criativa ainda era possível dentro das grandes gravadoras e, acima de tudo, levada a sério por um público atento, curioso e disposto a ser desafiado. Esse foi o grande trunfo: inovar em um ambiente que ainda valorizava o risco artístico como um gesto legítimo.
Um ano depois, ele daria continuidade ao projeto lançando “Milagre dos Peixes Ao Vivo”, um baita álbum com shows gravados no Teatro Municipal de São Paulo.
Há quem diga que esse tenha sido seu auge criativo — o que eu concordo plenamente. Ainda não encontrei um disco que possa fazer par com “Milagre dos Peixes”.
*Dica: se for escutar este álbum, ouça aqui. Nos streamings a ordem das músicas está errada e os títulos estão trocados.